Monday, April 12, 2021


A Vida pariu-me na cara
Numa rua banal
Emergiu de uma escara
Num milagre seminal

Verteu-se de uma cicatriz
Vagina rasgando o betão
É arte por ser raiz
Universa-se em coração

E eu senti-me a sentir-me
Neste parto que me acontece
Em que uma certeza firme
No meu peito alvorece

Quantas cicatrizes nos marcam
Nos muros que se crescem em nós?
Quantos poços escavamos
Nos poços em que estamos sós?

E dessas rasgadas feridas
Que nos prendem à má sorte
Brotamos em canções floridas
Trazendo a Vida à morte.





Saturday, April 3, 2021

 A SENHORA DOS GATOS

 

Eu desejaria ser poeta

Peço perdão por não ser poeta

 

Porque desejaria ter o dom de honrar

No merecer da sua beleza

Esta senhora pequenina e frágil

Que percorre a rua onde vivo

Como uma evanescente borboleta

 

“Meus meninos, meus meninos!…”

Chama de prato numa mão

E o coração na outra

Este ser antigo, mas tão novo

Rosto sulcado por muitos verões

E sentires que já foram, mas ainda lá estão

 

Suaves olhos de recém-nascida

E voz de menina que canta uma moda

Anacronismo poético desta velhinha

Encantamento surpresa na rigidez citadina

Tal papoila vermelha que é régia em beleza

Na aridez da planície em tempo de seca

 

“Meus meninos, venham cá comer!...”

E os felinos, que escutam a fada

No canto mágico do seu amor

Desenrolam-se de si mesmos

E dos sonos que os fazem gatos

Trotando o asfalto em saltos criança

De meninos felizes por reverem a mãe

 

Um sorriso acorda-me o que sou

E a névoa que não deixava ver-me

Iluminou-se em arco-íris

 

“Como está, Dona Felicidade?”

Pergunto, com o carinho que me evoca

Este ser solitário e gracioso

Onde a saúde já não permanece

E a dor é visita frequente

 

“Chamo-me Felicidade, mas não sou muito feliz…”

Entoa, num riacho que corre em queixume

E me chega ao peito como um tilintar de sininho

Por entre miaus e ronronares de fome

Que festejam o chegar da abundância

 

Não é feliz, a Felicidade

Ironia paradoxal da sua presença

Deste ser bondoso, de solidão cansada

Este ser pequeninho, numa rua pequenina

Duma cidade grande, de um mundo maior

 

Não é feliz, a Felicidade

Mas a sua generosa canção de amor

Torna uma rua pequenina

Um infinito universo de vida

Para gatos famintos

 

E a mim, que não sou gato

Traz-me um milagre diário:

Abre-me as portas da alma até ao céu

Lá, onde a Felicidade existe.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Saturday, March 20, 2021

 ELOGIO DA PERDA

 

Ver o mar

E uma praia infinita

Depois de meses

Em que perdi

O ganhar de os ver

Relembrou-me o ganho

Que se ganha em perder

 

O peito tornou-se-me

Ainda mais céu e mar aberto

Mais aceso e mais desperto


E o mar, que nunca foi meu

Tornou-se mais Mar

Para quem o perdeu.

Thursday, March 4, 2021

 Vi a primeira andorinha do ano

O peito hasteou-se-me em cores de alegria
E senti-me todo sorriso e céu azul

Que um pequeno e ágil pássaro
Da coragem irresistível da migração
Voe consigo a semente da esperança
Da memória e promessa da bem-aventurança

E eu, que era só eu, tornei-me primavera.

Friday, January 22, 2021

A folha com o tempo certo
De ser antiga e de ser tempo
E tempo de ser antiga
É raptada pelo vento
Que a liberta e a fustiga
Titã soprante das estações
E dos mistérios da mudança
Vertigem prenhe e manifesta
Morte que se revela em dança
E a folha que era folha
Quando era árvore e era folha
Já não é folha nem árvore
Nem angústia da escolha
Foi arrancada de si
E da raiz que lhe dava ser
É vento, espaço e vazio
Até ao mergulho no rio
Águas correm e empurram
Fluxo rugente e urgente
Força inelutável e certa
Brutal por ser torrente
E a folha que não se luta
De ser folha e não ser luta
É agora rugido em água abrupta
Majestade selvagem e incorrupta
E na viagem molhada
De movimento que brada
A folha é transmudada
Até uma nova enseada
Carícia de encontro à margem
Da vida que traz a mensagem
Genes amor e linguagem
Código magia e imagem
E onde descansa em jazigo
Túmulo no ventre antigo
De onde a seiva germina
Fêmea de terra peregrina
Silêncio de decomposição
Húmus, sombra e podridão
No céu vivo que é este chão
Novos começos fulgirão
As veias que a árvore encerra
Que da vida nada se perde
Nutridas pelo pulsar da terra
Inspiram de broto e de verde
Folhas nascem em nova sorte
Na árvore fria e despida
Pois não há vida que não seja morte
E não há morte que não seja vida.